No seu blogue do New York Times, o prémio Nobel de Economia Paul Krugman introduz a expressão “zombie ideas” para se referir àquelas más propostas económicas já mortas que ressuscitam periodicamente. Aprendo a imagem numa entrevista que lhe faz Amy Goodman no inimitável noticiário Democracy Now! ( ), e aproveito-a sem pudor. O “bilinguismo zombie” do meu título não se refer aos milhões de pessoas galegas que conhecemos e falamos duas (ou mais) línguas, mas às ideias zombies sobre a nossa crise sociolinguística que a história mata periodicamente mas que levantam cabeça à mínima, com sedução de ultratumba, e que haverá que voltar a matar com paciência. O “bilinguismo harmónico” de Fraga Iribarne ressuscitou há pouco no corpo da “amabilidade linguística” de Alberto Núñez Feijóo. Na realidade, são novas versões da velha ilusão do convívio entre línguas, que nunca funcionará na Galiza (entre línguas) até que se destaque uma outra maneira de articulá-lo.
Krugman aplica a verdosa expressão a certas políticas de investimento financeiro do governo de Obama para abordar a crise do sistema, cujos detalhes me escapam além do compreensível resumo “socialização das perdas, privatização dos benefícios”. O importante não é isso, mas as caraterísticas das ideias zombies que aponta o economista: as ideias zombies, embora provadamente inúteis, são ressuscitadas propositadamente porque parecem a saída mais fácil perante uma crise de grandes dimensões. Na realidade não são saída tal, mas o pessoal contente.
A crise sociolinguística da Galiza criada com a chegada de Iribarne e recrudecida nas últimas semanas tem algo disto. A hegemonia Popular quebrou uma trajetória de discurso galeguista sobre a língua que amplos setores políticos abraçavam no Franquismo e nos anos da inexistente “Transición”. Na realidade, a proposta zombie do “bilinguismo harmónico” nunca foi nem por desenho a descrição dum estado de cousas, mas, ab contrario, uma medida de intervenção para abordar o conflito. Quando num país as diferenças entre as práticas linguísticas (galego/espanhol) se superpõem historicamente com barreiras sociais, como as de classe ou a tensão campo/cidade (uma outra articulação do mesmo), o conflito sociolinguístico não é apenas uma etiqueta que dependa da consciência que sobre ele haja nos falantes, mas um agregado analisável de fenómenos sociais: assimilação linguística ao espanhol (porém, imobilidade social ascendente), discontinuidade na intervenção pública sobre a língua (decretos que não se aplicam; decretos que se aplicam e derrogam; legislações que se contradizem; recursos e contra-recursos), incapacidade de gerarmos elites económicas galvanizadas em torno da Língua, incapacidade de produzirmos a própria Língua, etc. E, agora, a “amabilidade linguística” sai da tumba como mais uma reencarnação da ideia zombie “bilinguismo harmónico” (que por sua vez era reencarnação de “galego na intimidade”) para destacar que o problema é que éramos antipáticos e que não éramos linguisticamente livres... em espanhol.
Mas as ideias zombies são difíceis de matar, porque são singelas, contagiam-se e, afinal, como nalguns filmes de zombies, no fundo demasiada gente resistente prefere render-se à sua dentâmia antes que ter que combatê-las heroicamente. Se eu soubesse como, estaria tentado a relacionar a ideia zombie da “amabilidade linguística” com a hipoteca-lixo da pretensa “assimilação ao espanhol como fonte de avanço social”, que a gente de acima para baixo foi comprando baratamente enganada durante séculos, como se fosse a única oportunidade para terem um lar, em todos os sentidos. E, caminho que vamos, não o têm. O resultado, já o vemos: não por aprenderem espanhol aos filhos fundam uma Zara. Socialização da perda do galego, privatização dos benefícios do espanhol.
Para ser justo, também o nacionalismo linguístico galego gerou questionáveis produtos financeiros, mais minoritários, como uma certa concepção essencialista do tipo de monolinguismo necessário para fazer Pátria, só recentemente matizado como “monolinguismo social coexistente com o polilinguismo individual”. E versões também recentes dum outro discurso galeguista aproximam-se curiosamente duma outra ideia zombie de longas unhas: a do “galego como opção”, parente genética do “direito de viver em galego [de quem assim o desejar]” que preside o Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega, mas também parente (lagarto, lagarto) da zombíssima “liberdade linguística”. Alguém aprendeu de alguém.
E il não será, cavilo eu enquanto algo me espreita na caluga neste gabinete anoitecido, que toda esta glotopolítica zombie emerge dum único genoma cujo código leva as letras “direito”, não “obriga”? Aventuro isto, rapidamente, porque o discurso dos “direitos linguísticos” que nos ameaça aboia perigosamente entre o individualismo liberal dos “direitos individuais” e um certo essencialismo dos “direitos coletivos”, que o galeguismo não foi ainda capaz de articular bem no discurso, e pouco na legislação do malfadado Decreto do Ensino. Um zombie não se pode matar só um pouco. Mata-se com uma lei absoluta como “O galego ou português é a língua do sistema educativo”, e aí não há “direitos”. Porque, com crise ou sem ela, regular um direito “individual” é mais singelo do que regular um direito “coletivo”; por isso ressuscitam os mortos liberais. Para a segunda meta, precisa-se aceitar com dor um suficiente consenso sobre a existência do social, e do histórico, essa maldita miragem que constringe os nossos atos desde antes de nós. Será duro, mas assim entendido, o “direito coletivo” à língua do país desaparece como foco de legislação, e torna-se apenas no sobreentendido necessário para um outro discurso glotopolítico e para um outro agir legislativo, uma ideia central e nada zombie: a imanente obriga dos poderes públicos de intervirem para discriminarem positivamente a língua ameaçada, mesmo por mor dela, não polo número de nós.
Por tudo isso, nas últimas eleições votava-se também entre Direitos Linguísticos dos Indivíduos e Obrigas dos Poderes Públicos. Parece que ganhou por um pêlo o primeiro. Pergunto-me que terá votado, como descendente da Galiza, o cineasta estadunidense George A. Romero, magistral zombólogo d’A Noite dos Mortos Viventes. Não sei, mas a sua genialidade viria-nos bem em Compostela na manifestação do 17 de maio em favor de mais galego, sempre, e pola extirpação de qualquer ideia zombie “bilinguista”. Quero crer que, desde o seu flat de Nova Iorque, Romero encoraja à Mesa, à AGAL, às associações e locais sociais e outros coletivos, a nós: Não perdamos a oportunidade de que a nossa assembleia de Compostela seja absolutamente unitária. Devolvamos as ideias zombies sobre a língua ao cemitério com palavras de força em inteligente unidade, que é possível, ou em poucos anos os zombies não serão as ideias mas todos nós, inclusive os agora bilinguistas.
Celso Alvarez Cáccamo naceu en Vigo en 1958. É profesor de Lingüística na Universidade da Coruña. Esta é a súa web. »