Hoje de manhã sofrim o meu primeiro controle policial sem qualquer motivo, numa rua da Corunha. Confesso que o meu historial não tem medalhas: nunca antes me parara a Policía Nacional por terrorismo, alcoolémia, drogadição ou monolinguismo.Mas hoje ia eu de carro velho ao trabalho, e um polícia fluorescente muito armado fez-me parar no controle, por detrás duma carrinha. Fervilhavam em torno da Nave Nodriza outros polícias até os dentes, sem se afastarem muito, como em invisível cordão umbilical. Quem sabe os seres que havia aí dentro.
Todo o acontecido foi uma humilhação muito cordial:
-Documentación- disse-me o póli.
-Podo perguntar por que me para a mim?- interroguei.
-El oficial se lo explicará.
Saím do veículo: à mesma altura um sente-se menos minorizado. Chegou o Oficial, já madurinho. Era algo mais baixo e mais guapo que eu. Desenvolveu-se um ameno diálogo em Bilíngua Galega. Polo acento, o Oficial não era marciano, mas de colheita própria:
-La documentación.
-Pode identificar-se vostede, por favor?
-Le diré mi identificación cuando me dé la suya. Después puede ponerme una denuncia, si quiere.
O meu bilhete de Identidade passou das suas mãos à Nave Nodriza para o seu processamento. Fiquei órfão, despido. Também examinou o meu carné de conduzir, que agora é mui moderno.
-Pode explicar-me por que me parou a mim?
-Es un control. Como ve, vamos de uniforme.
-Será porque buscam um coche roubado? Ou é pola minha pinta, estes pêlos...
-Noo, eso ya no.
O Oficial, aggiornado, levava razão: a minha estética não é muito terrorista. Um golo no seu favor.
-La documentación del coche.
Eu já estava adrenalínico. Apanhei esse feixe de papéis absurdos que, sinceramente, nunca compreendim.
-Este seguro ya está caducado.
-Mas vostedes já têm os dados no computador- tentei canear, enquanto começavam a tremer-me visivelmente as mãos. -Mire, conseguem vostedes pôr nervosa à gente.
-Si no tiene nada que ocultar no debería estar nervioso.
Estes pólis têm modo tollendo tollens para tudo. São polígrafos viventes. Saíu-me o Bom Cidadão que levamos dentro:
-Não, não tenho nada que ocultar.
Por fim apareceu o papelinho do seguro. Mas agora...
-El permiso de circulación.
Penso que era uma cousa verde. Dentro da astronave, a minha Identidade continuava a ser processada.
-Não sei por que param a gente normal. Eu ia para o trabalho. Haverá algum político na cidade...
-Es un control de seguridad. No le puedo decir más. Supongo que usted en su trabajo tampoco dará toda la información.
A comparação era fantástica, de manual. Imaginem: “Oes, corta-me uma tábua tipo longa para o armário empotrado. Mas não che vou dar toda a informação”. Seguim o jogo:
-Eu sou professor. Quando um aluno me pergunta, tenho que dar-lha. Sou Funcionário do Estado-. Golo para mim: 1-1. Mas o Oficial devia estar a jogar um outro partido.
Continuei a passar-lhe uns papéis e a recolher outros, com paciência mútua. Mas começou a invadir-me uma gástrica confusão, uma incopiável sensação de eternidade. Precisava dum chute. Abrim a porta posterior do carro para pegar na jaqueta onde levava o maço de cigarros. Num instante pensei nesses vídeos de YouTube que são como a realidade, ou ao revês: Póli metralhético detrás de mim crê que vou apanhar a Parabellum e mete-me um tiro. O que faço? Explico-lhe antes? Desisto? Que é mais importante, a vida ou a droga? Os fumadores sabemo-lo bem: prendim o cigarro com determinação e alívio. Conclusão: Os pólis têm Raios Xis nos olhos para escanear jaquetas.
-A ver, vamos por partes- propugem-lhe ao Oficial, entre transportes de papéis. -Quanto mais despacinho melhor. Assim, mentres, vão passando os coches onde escapa a gente realmente perigosa.
O Oficial olhou-me MUITO raro.
-Si supiésemos antes a quién detener o no, ni haría falta el control. Es como los médicos, que de entrada no saben lo que tiene el paciente.
Este Oficial trazia todas as comparações bem aprendidas do cursinho de Civismo. Por algo chegara à sua categoria. E aí compreendim todo Althusser, o sentido final do Aparelho Repressivo. Os polícias são como médicos, só que escolhem eles os pacientes, ao chou: Queremos Elegir! Observam os signos (papéis) e os sintomas (nervosismo), e vão diagnosticando, diagnosticando. E depois receitam: carrinha. Mas irrompeu a dúvida: Os polícias são médicos, ou antibióticos? Melhor, quimioterapia? Eles detêm e matam alguns bichos maus, mas também muitos bons. Afinal, o Corpo da Patria fica mais forte, ou mais débil? Puff, que queime! Escusei de explicar ao Oficial que no meu trabalho eu também sou médico, ou polícia, ou curinha: sintomas (exame, febre, nervosismo, tocamientos impuros), diagnose (suspenso, griposo, terrorista, pecadorll), tratamento (estudar, aspirina, carrinha, avemarias).
-Abra el maletero-. Remexeu um pouco de lugar duas bolsas grossas com livros e outras armas.
Por fim chegou de volta às minhas mãos a minha Identidade. Muuuá!, quanto te estranhava! Que faria eu semmigo próprio na carteira contra o glúteo direito?
-Mi número de placa es el xx.xxx- informou-me o Oficial. Ao pior mentia. Ao pior nunca mo teria dito se eu agora estivesse no trulho. Ao pior queria que eu fizesse uma Avaliação Anónima positiva das Forças de Segurança pola Internet, para um ascenso. Bolonha.
-Puede escribirlo.
-Não, já me lembro- disse, apontando para a minha cachola. Ainda me lembro. Mas a verdade é que este dia o Oficial xx.xxx não mereceu uma denúncia.
-Que, então não sou delinquente?- e entrei no carro. Concluir como um tarugo uma conversa tensa sempre tem um aquel de vitória. Devo admitir que estou muito contente do resultado final: 2-1.
Mas todo o dia continuei ausente, absorto. Calculo que será porque nunca estudei Educación para la Ciudadanía, e portanto sei que o Polícia Bom só existe na mitopolítica britânica. Estes pólis Nacionais metiam um medo de caralho. Soubem que eu era inimigo, quissesse ou não. Para garantir a segurança de qualquer político (dizem), ameaça-se a tranquilidade da gentinha. Polícia Galega? Nããã, thank you, assim estamos bem. Não se engane ninguém: somos inimig@s.
Enquanto jantava no comedor da Faculdade, decatei-me com preocupação de que não lavara as mãos depois da íntima experiência. Vai tu saber quantos germes terroristas se me aderiram nas gemas ao recuperar a minha Identidade, que passara de mão em mão e de arma em arma. Sei lá o que fizeram seres sem rosto à minha pobre foto na Nave Nodriza. Mas talvez tudo isto me ajude a decidir o sentido do meu voto, ou do meu não-voto, neste próximo Domingo. Na Galiza há vezes que o Entrudo dura uma eternidade.
Celso Alvarez Cáccamo naceu en Vigo en 1958. É profesor de Lingüística na Universidade da Coruña. Esta é a súa web. »