Polo pouco que sei sobre as relações entre essas abstrações que são “a língua” e “a sociedade”, qualquer língua escrita é muito difícil de dominar. Frente à fala, que se vai aprendendo como parte do processo de comunicação (que inclui outras cousas), a língua escrita acarreta anos de aprendizado formal, desde a caligrafia até à prosa mais elaborada. O maior ou menor número de anos é circunstancial para compreendermos em que consiste o processo de aprendizagem da escrita: consiste no estabelecimento de critérios de classificação social entre a gente “que sabe” e a que “não sabe”. Isto é assim na China com os seus milhares de caracteres, no Japão com os seus quatro sistemas gráficos, ou no crioulo papiamentu com a sua ortografia pretensamente “fonémica”. Ou, evidentemente, na Galiza. Isto é assim em qualquer sociedade de classes.
Pretender que uma escrita “fácil” vai solucionar a questão da classificação social é apenas desviar ou mascarar o problema, de maneira populista. A Língua, como recurso simbólico que galvaniza identidades nacionais, é sempre difícil. Até no seio das elites literárias, inteletuais e académicas --aquelas das quais se espera maior controlo de todos os elementos do complexo sistema da escrita-- existem irregularidades e erros ortográficos e normativos em geral, suscetíveis de serem vistos como marcas de imperícia. Claro que, igual que entre o “povo”, entre as elites há gradações, nomeadamente entre a perícia absoluta e a imperícia relativa. Mas deve existir uma fronteira entre as categorias, estabelecida pola capacidade classificadora da mente humana, e baseada dalguma maneira na acumulação de particularidades e “erros” relativamente ao modelo ideal de escrita. A partir de certa co-ocorrência de a-normalidades de vários tipos, incluindo as estilísticas, alguém “escreve mal”; alguns erros menos, e outra pessoa já “escreve bem”.
O fenómeno, paralelo na oralidade, fundamentase na própria natureza da língua como sistema: a transformação dos contínuos orais ou escritos em sistemas discretos que, por sua vez, se tornam em signos globais. Daí surgem categorias nativas como “castrapo”, “portuñol”, “galego de televisão”, “galego oficial”, “galego ilgueiro”, “galego reintegrado”, “galego lusista” ou “português”. A relação não procura ser exaustiva, mas patenteia que, ainda compartilhando estes sistemas uma grande parte das soluções orais ou gráficas, uns poucos traços orais ou escritos diferenciais são interpretados pola comunidade falante como altamente simbolizadores.
A categorização social funciona de maneira semelhante, tanto no referido à língua quanto a outras condutas que implicam o uso e exibição de símbolos de identidade ou de status. E, por metonímia ou contágio, o uso de um ou outro sistema converte-se em marcador de uma ou outra identidade ou status. Na realidade, a idealização que a mente impõe opera sobre cada um dos sistemas de língua mencionados. Tautologicamente, quando um conjunto de elementos é um sistema, não pode deixar de ser sistemático e de ter vocação de normativo. Por isso, qualquer um destes sistemas é, também, suscetível de se converter naquela norma absoluta cujo domínio igualmente absoluto é símbolo de prestígio ou de poder, quer dizer, em Língua. Por outras palavras: qualquer Língua é igualmente difícil.
A Galiza como construção tem agora uma oportunidade de começar a entrar numa nova fase do jogo de classificação social a meio da Língua. Pretender que na sua história a Galiza vai escapar a esta lógica da Língua escrita em função da forma concreta escolhida como norma é fútil... se não escapar, simultaneamente, à logica do Capital, o qual, infelizmente, não parece muito próximo. Neste sentido, o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, recentemente aprovado polo parlamento de Portugal e a ponto de ser sancionado oficialmente polo presidente do Brasil, leva o caminho --na minha opinião dificilmente obstaculizável-- de se tornar no instrumento de unificação da escrita das múltiplas variedades portuguesas na chamada “globalização”, isto é, nessoutro ponto de referência absoluto em relação ao qual se redefinirão as “perícias” e as “imperícias”. A lógica classificatória da Língua portuguesa cobrará, assim, maior transparência, o qual deveria ser útil para compreendermos várias questões. Primeiro, o funcionamento dessa própria lógica, incluindo os mecanismos de construção das categorias “Falantes” ou “Povo”. Segundo, o lugar de cada comunidade imaginada polo poder da escrita (a Galiza, Portugal, o Brasil) dentro da comunidade de Língua. Terceiro, os papéis das elites respetivas tanto internamente quanto na concorrência simbólica internacional.
A recém criada Academia Galega da Língua Portuguesa, que elegeu o professor José-Martinho Montero Santalha como presidente, deve compreender bem a importância desta conjuntura histórica. Seria cegueira negar que qualquer pessoa que escreve habitualmente tem na cabeça uma Academia ideal da Língua, exista ou não esta como instituição, e chame-se como se chamar. Sabendo ou imaginando “como se escreve” a sua língua, à partida ninguém quer escrever contra o seu próprio modelo exceto com marcadas finalidades estilísticas ou ideológicas (literatura, agrafismo deliberado, resistência). As Academias da Língua (com esse nome ou com outro) podem gerar mais ou menos aceitação ou rejeitamento (a mim, pessoalmente, pouco do primeiro), mas, num processo de destilação de acima para abaixo, a realidade é que os seus critérios e práticas de “correção idiomática” vão entrando em setores da população escrevente, que, além de utilizarem as letras para a comunicação diária (e talvez nem “além de”: a comunicação por SMS ou por rápido correio eletrónico, por exemplo, não procura ser académica), querem saber onde se situam a respeito desse absoluto que é a Língua e portanto a Nação.
Neste sentido, uma Academia cujos próprios membros e membras (membras, sempre poucas: a Língua, como o poder do Capital, é-che uma cousa muito masculina) não utilizam ou não utilizarem publicamente com todo o rigor (na sua literatura; nas suas colunas habituais nos jornais; nos seus artigos científicos; nos seus discursos) as normas ortográficas e morfológicas que ela propõe e o léxico não contaminado (por definição) que ela impulsiona, é singularmente peculiar como tal Academia. Esta agrupação de pessoas poderá ser uma instituição de cultura, mas não uma Academia que deva ser legitimada como “critério de correção” numa sociedade de classes linguisticamente normal, isto é, numa sociedade classificada (também) pola perícia na Língua, que é inerentemente difícil, e --mal que lhe pese ao populismo-- inerentemente transformadora das identidades: porque o labrego que chegou a aprender a Língua, quando a aprendeu já não foi labrego. Da mesma maneira, uma sociedade literária que ensina democraticamente essa Língua escrita durante décadas para que, afinal quase ninguém a aprenda bem, não deve acusar quem utilizar um outro modelo de Língua, não ensinado nem promocionado, do elitismo que ela própria, por sistema, pratica. Não poderia ser doutro jeito, pois só são elites aqueles grupos que destacam, precisamente, porque toda a população tem, teoricamente (“democraticamente”), acesso aos mesmos recursos cujo domínio confere distinção às elites.
A Língua é difícil. E Khalepá tá kalá, diz que disse Platão (que eu não o li): “O difícil é belo”. Ou, numa tradução alternativa pós-moderna que me ensina a Internet para a ocasião: “Se vale a pena levá-lo a cabo, vale a pena levá-lo a cabo bem”. Por uma vez depois de tantos séculos, seria interessante.
Celso Alvarez Cáccamo naceu en Vigo en 1958. É profesor de Lingüística na Universidade da Coruña. Esta é a súa web. »