Em textos anteriores (“Língua, Mercado e liberdade” e “O conflito linguístico só tem uma saída” tenho apontado que a história da política linguística na Galiza se deve examinar como a articulação de três dicotomias entrecruzadas: o âmbito público frente ao privado; a dimensão individual frente à coletiva; e os direitos frente aos deveres. Hoje, a máxima expressão desta dialética múltipla na crise sociolinguística é o conflito entre deveres públicos coletivos a respeito da língua e direitos privados individuais, por exemplo os “direitos” dos e das estudantes do nosso sistema educativo.
Um sugerente trabalho (Peter Bratsis, 2003, “The construction of corruption, or Rules of separation and illusions of purity in bourgeois societies”, Social Text 77, pp. 9-33) ensina-me que na democracia liberal a corrupção política pode analisar-se como a “contaminação” de dous âmbitos constituintes do social concebidos como “puros” em si e na sua separação mútua: o público e o privado. Quando os interesses privados contaminam o exercício público (por exemplo, quando um/a representante aceita um suborno), dá-se corrupção. Esta visão, argumenta Bratsis, não é universal de todos os sistemas políticos (por exemplo, não era na Grécia clássica), pois depende, precisamente, do “grau de separação” com que se conceba a pureza destes âmbitos e a “normalidade” das suas relações. Uma conclusão lógica, só apontada noutros termos no artigo, é que por definição todo o sistema capitalista é corrupto mesmo desde a sua própria definição ideal, ao permitir que interesses económicos privados (o benefício dos capitalistas) contaminem, por exemplo, as políticas de contratação laboral, que têm uma dimensão pública e coletiva.
Em que medida e de que maneiras é este enquadramento da corrupção e da contaminação privado/público aplicável à crise sociolinguística atual da Galiza?
Conhecemos suficientemente bem a história recente dum exemplo paradigmático da política linguística atual: as vicissitudes do chamado Decreto para o plurilingüismo no ensino non universitario de Galicia (2010). Poderíamos perguntar-nos, por exemplo, em que medida e de que maneiras o dever público de promoção do galego foi “contaminado” pelos interesses setoriais de novas classes meias urbanas no desenho duma amostra de legislação que vulnera o diretivo teórico da responsabilidade histórica dos nossos governantes. Comumente, quando se fala em “corrupção política” atende-se ao aspeto económico, não ao saber representado pela competência em uma ou mais línguas. Mas Pierre Bourdieu mostrou repetidas vezes não só que a Língua Legítima (a normalizada e prestigiada) é uma forma de capital (capital cultural), mas que as formas do capital são convertíveis entre si. O itinerário do capital cultural linguístico é comumente conhecido, mesmo se não explicitamente formulado assim: o saber (a competência no padrão linguístico) dá acesso a títulos académicos, que são transformáveis em postos de trabalho, em capital económico, em ascenso de classe; o exercício da literatura, mais modestamente, dá acesso a prémios e publicações; pelo contrário, a ignorância do padrão “condena” ao trabalho carente de qualquer tipo de capital, ou ao desemprego.
Uma função da escola democrática é a capacitação nos padrões das línguas para que sejam susceptíveis de transformação em capital, em capitais. O modelo de escola bilingue, fiel à ilusão da concorrência capitalista, encena assim um aparente confronto entre duas modalidades do saber: o Espanhol, e o Galego (na realidade, sabemos que quem perde são as pessoas a-língues e ágrafas de ambos sistemas, mas isto é constitutivo da concorrência e necessário para o sucesso dos outros). Assim, a fórmula do 50/50 em horário educativo para cada língua é, aparentemente, a que melhor se acomodaria ao bicefalismo que organiza tantos aspetos da cognição social: esquerda/direita, Coca-Cola/Pepsi-Cola, Galiza/Espanha, Vigo/Corunha, Celta/Desportivo, Barça/Madrid, e até (até) capitalismo/socialismo, como se o socialismo pudesse ser apenas uma “oferta” eleitoral inserível nesta cognição social democrática. Neste sentido, pareceria que o “equilíbrio” de línguas respeita o jogo da concorrência. Na realidade, não há maior distorção do que esta. Explicarei por que.
Porque o princípio do “equilíbrio” de horas de ensino (de “capacitação igualitária”) no sistema educativo galego, surgido duma luta de interesses como a presente, situa falaciosamente no mesmo nível a dimensão do dever público coletivo e do direito individual. O aparente “respeito” às decisões dos pais (a “consulta” às suas vontades) pode-se ver como uma forma de contaminação do privado no público; nomeadamente, duma forma distorcida e des-reconhecida, porque no fundo, nem a “consulta” nem o Decreto garantem absolutamente nenhum “direito” individual de aprendizagem numa ou noutra língua. Nisto tem toda a razão o núcleo duro do liberalismo galego (duas ou três pessoas), mas o assunto é que, na dialética imperante, nenhum poder público está obrigado a garantir esse direito se isto acarreta o esvaziamento assumido do sentido do “público”. Porém, é evidente que o Decreto quer dar a aparência de que algo da “vontade popular” se respeita.
A fonte central de contaminação do processo planificador atual é, sem dúvida, a noção —cada vez mais viva nos diversos discursos e contra-discursos— da “imposição” do galego. Deve-se fazer constar o sucesso do ativismo ultraliberal em, de novo, inocular o discurso com enquadramentos aparentemente desvirtuadores do caráter público da ordem democrática (e digo “aparentemente” porque, de facto, esta ordem democrática se deixa penetrar maleavelmente quando essas inoculações não ameaçam —antes, reforçam— a sua essência). A ideia da “imposição” do galego surge, basicamente, da fantasmagórica construção de que o indivíduo tem o direito de escolher as formas de capacitação para a acumulação de capital, o qual não só é uma falácia, mas vai frontalmente em contra do princípio de imposição da própria lógica do capital. E lutar contra um tipo de “imposição” e não o outro é não só contraditório mas entranhável. Isto é, no capitalismo, nem os pais nem os estudantes têm capacidade para escolherem o factor de convertibilidade do conhecimento duma língua ou dum título académico; tampouco escolhem o valor da moeda, nem o valor que o conjunto de “bons” relacionamentos sociais (o capital social) tem para a obtenção de bons trabalhos ou de um crédito empresarial. Por que, então, deveriam poder escolher a “moeda de troca” linguística para a acumulação de capital sem, ao mesmo tempo, terem poder para escolherem as regras do Mercado? São os pais que estabelecem a “utilidade” dessa moeda linguística? Ou é a dinâmica dos mercados?
Patentemente, é esta última. E ela dita que hoje o valor do galego (como proto-padrão ainda fora da língua portuguesa) seja sensivelmente inferior ao do espanhol. Perante esta evidência, não é ilógico então que classes médias emergentes, temerosas de perderem o que têm, tenham reagido à estensão do galego nas aulas. “Elegir lengua” deve entender-se assim na realidade como ‘o direito a escolher o mercado’, o âmbito territorial e social de circulação e transformação do valor constante dessa língua noutras cousas segundo regras estáveis. A expressão comum deste sentir é que “Total, el gallego no sirve para nada”. A realidade é que, para estas classes emergentes e outras, as horas de ensino em galego afastam os seus filhos da possibilidade de acumularem competência linguística em espanhol, isto é, em capital linguístico potencialmente transformável. E de facto, infelizmente, nem o formato do Decreto do bipartido “50% mínimo para o galego, mas também algo para o espanhol” deixava de ser um exercício de hipocrisia pública, sobretudo porque não foi acompanhado de medidas também de intervenção que capitalizassem com efetividade no mundo social (na Galiza e internacionalmente) esse galego ensinado na escola. Não se pode construir Língua sem construir Capital: não conheço nenhum caso. Nem Polícia, a propósito.
Porém, a decisão do governo atual do PP, de não permitir “mínimos” e de estabelecer “máximos” teóricos para ambas as línguas, tampouco representa um ponto intermédio conciliatório entre interesses grupais. Por uma parte, o Decreto está contaminado pelos interesses privados setoriais —por esse medo ao desclassamento do “lobby” que podemos chamar “español-falante” que impus o seu discurso— mas não chega ao ideal da pretensa “liberdade” que Feijoo anunciou. Mas, por outra, o Decreto oferece apenas uma miragem de capitalização linguística ao setor “galego-falante”, pois é materialmente impossível que, vista a distribuição atual do poder (de todo o tipo) e do capital (de todo o tipo) na sociedade galega, saber bem o galego possa significar o mesmo, representar tanto e ser convertível da mesma maneira que saber bem o espanhol. O decreto é portanto tanto um roubo a uns como uma fraude a outros, e nenhum “consenso” social se sustém estavelmente na base de que todos saiam perdendo. Esta perda mútua (quando nenhum ganha) é solução salomónica frequente, precisamente, nos conflitos e pleitos privados, o qual indica de novo o grau de contaminação no enquadramento geral da crise sociolinguística em que está a incorrer o neoliberalismo linguístico de Feijoo/Lorenzo.
Haveria uma alternativa. Um modelo de imersão no galego/português no ensino seria o máximo expoente do caráter público da escola: a unificação no projeto coletivo e integrador de dotar o galego de capital linguístico transformável. Mas —pode ser perguntado—, desde a própria lógica do capital no âmbito galego, por que o galego, e não o espanhol? Por várias razões: Não apenas porque o espanhol já é transformável; nem apenas (ou não necessariamente) porque o galego é juridicamente “a língua própria” do país; nem tampouco só porque a imersão em galego e a sua capitalização deveriam acarretar, por pura inércia, a sua convertibilidade em capital económico num sistema absolutamente necessitado do famoso “dinamismo”; mas sobretudo porque a unificação do padrão-moeda-linguístico (a nivelação potencial do indivíduo que vai lutar pelo “sucesso”) numa dada formação social que é a galega, representaria uma restauração dessa epitómica “pureza” do âmbito público coletivo na democracia capitalista, ritual e orgânicamente separado do âmbito do particular. Assim, a “Língua Galega” como língua do ensino materializaria e reificaria a natureza do público como expressão do histórico-coletivo, num tipo de filosofia política hispânica tradicionalmente necessitada de essencialismos operativos.
Claro que tudo isto são apenas inúteis especulações pseudo-teóricas ao fio dum útil enquadramento dicotómico mal assimilado. Tudo isto seria até crível se tivesse base na verdade prática diária. Mas a realidade de que falo é invisível. A realidade mais palpável e mais convincente do dia a dia da Galiza, a que nos move e remexe as vísceras, o coração e a mente (nesta ordem), é, simplesmente, que muitos pijos español-falantes que votam no PP aborreciam do Decreto do bipartido porque aborrecem do galego, e ponto; que a Feijoo tanto lhe tem legislar ou decretar o que for sobre um idioma ou sobre o outro com tal de chegar a Madrid; e que Lorenzo resultou vender-se a um alto cargo por prestígio. Tudo isto já nem é nem contaminação do público pelo privado: é o puro império deste sobre aquele. Creio lembrar que ao começo apontava algo sobre o caráter inerentemente corrupto da democracia capitalista.
Porque, por dar uma viragem, uma importante conclusão do trabalho de Bratsis é que a percepção comum da “corrupção” (e a conseguinte aversão a ela) é, contudo, uma construção necessária do sistema capitalista. Quando o privado está estruturalmente vinculado ao público, as regras convencionais de separação “pura” dos dous âmbitos (não aceitar subornos, mas tampouco obséquios de uma dada importância; não permitir que os interesses particulares ou setoriais interfiram na responsabilidade pública) são apenas os guias para que, a olhos da cidadania, dos médios e do poder judicial, se julgue se uma figura pública ou um partido ultrapassou ou não os limites da decência política. Na corrupção por contaminação, a dimensão da falta em si não é tão relevante quanto o próprio facto de o cargo público ter transgredido a regra de separação público/privado, como um mandamento que, categoricamente, ou se observa ou não se observa. Em 2007, por exemplo, depois de se ter forjado um pacto parlamentar unânime sobre o uso do galego no ensino, o Partido Popular de Galicia rompeu o “consenso” inesperadamente quando decidiu, no último minuto, subordinar o “bem comum” aos seus próprios interesses, por indicação de Madrid. O então sociolinguista Anxo Lorenzo escrevia contra este facto:
“É o Partido Popular quen está a separarse do vieiro lingüístico consensuado nos anos 80 por motivos de estratexia partidaria (desgastar o goberno)” (“Política lingüística e ‘consenso’ en Galicia?”, A Nosa Terra, 2008).
Esta ruptura do consenso destacou flagrantemente a irrupção do privado (do simples benefício eleitoral), e imediatamente surgiu a dúvida sobre o carácter espúrio da decisão. Hoje, a ausência de “consenso” por parte da oposição ao Decreto do plurilingüismo é criticada em termos reflexos pelo mesmo Anxo Lorenzo, hoje Secretario Xeral de Política Lingüística que elaborou o próprio texto:
“[Em declarações], Lorenzo inscribe o rechazo aos seus plans a organizacións ‘relacionadas cos partidos da oposición’; a súa intención con respecto ao plan da Consellería, asegura, só é ‘desgastar’ ao Executivo” (“Feijóo di que os sindicatos do ensino buscan desequilibrar as linguas”, Xornal de Galicia, 9 Abril 2010).
No discurso galeguista argumenta-se, para desfazer o paralelo da falta de consenso, que as circunstâncias então e hoje são muito diferentes: em 2007 tratava-se de regular a continuada “promoção” do galego a que pretensamente obriga a Lei de Normalización Lingüística. Numerosos textos recentes assim o formulam. Mas hoje, alega-se, a proposta do Partido Popular atenta contra essa mesma Lei. Não é este lugar para argumentar por que nenhuma destas formulações se sustenta. O que ambas situações patenteiam é simplesmente que o “consenso” consiste na ilusão de normalidade (de normalização) na adequação entre o âmbito público e os interesses particulares de apenas três forças políticas com representação parlamentar, forças e interesses que praticamente monopolizam a raquítica esfera pública nos textos de opinião, debates, publicações coletivas e atos político-culturais institucionais e para-institucionais.
O “público” é, na Galiza como em qualquer sociedade do capital, o território onde se encena a articulação legitimada dos interesses particulares. No “consenso” político materializa-se a ilusão da pureza democrática do público. E assim, no discurso dominante, a unidade em temas aparentemente fundamentais como a Língua (por exemplo, a unanimidade no Plan Xeral de Normalización da Lingua Galega) emerge como a máxima expressão do ideal do funcionamento democrático (como a unidade contra o “terrorismo”), a partir da qual se pode estimar e portanto estigmatizar o carácter sectário das posições “extremas” (o españolismo mais recalcitrante ou, sobretudo, o galeguismo hegemonista reintegracionista) como manifestações de interesses minúsculos que —estes sim— em nada representariam o “comum”. A ilusão do âmbito público invisibiliza desta maneira a contaminação sistémica, e gera, por sua vez, a outra ilusão que contemplamos e que nos fazem deglutir estes meses: que, na atual crise sociolinguística da Galiza, a censurável contaminação público/privado só consistiria nas pressões dos “lobbies” linguísticos de classe ou no transfuguismo ideológico e disciplinar dum Secretário Xeral de Política Lingüística —já declaradamente ex-sociolinguista— para o próprio benefício pessoal (capitais, formas dos capitais, eternamente transformáveis). São estas as pequenas moedas discursivas que se trocam nos papéis e nas ondas para os comerciantes obstaculizarem a análise da raiz das questões, na melhor tradição monopolista especular do galeguismo tolerado e do españolismo hegemónico.
Celso Alvarez Cáccamo naceu en Vigo en 1958. É profesor de Lingüística na Universidade da Coruña. Esta é a súa web. »