Senhor Juan Carlos de Borbón, meu rei:
Mire usté. A mim o que faça na sua intimidade religiosa pouco me importa. Mas, enquanto você seja um empregado do Reino, de milhões de súbditos com D.N.I., guarde a exibição das suas crenças para dentro da sua própria solução habitacional. Eu pago os meus tributos para o seu soldo como bom espanhol. Juro-lhe que há anos que não minto na declaração da renda. E o artigo 16.3 da Constitución que lhe dá trabalho diz: "Ninguna confesión tendrá carácter estatal".
Mas na noite do passado 24 de Dezembro, você soltou-nos mais um desses sermões de catequese pola televisão, paga também com o dinheiro de todos e sobretudo do BBVA. O seu predecessor, lembra?, o Capitão General que o colocou no trono, falava-nos em cada 31 de Dezembro para desejar-nos um ano novo ainda pior. Mas você, meu segundo Capitão General, por se distanciar dele e se aproximar dos nossos corações partíos, mudou a data para o angélico 24. Mesma diferença, como dizem em inglês. Ainda por riba, ameaça-nos com que o seu filho Felipe vai continuar a fazer o seu trabalho no futuro.
Tanto tem. Fale o que quiser, que há liberdade, até para si. Confesso que zapeei uns instantes da sua ladainha. Mas quando saíu no fundo da imagem o presépio esse com as figurinhas cerâmicas de uns personagens estranhos de há 2.000 anos, disse eu, tate, aqui há tomate. Olha tu para as famílias disfuncionais. Não nos podia ter deliciado com o fundo duma colorida natureza-morta ou duma lâmina da Rendición de Breda? Mas não, tinha que ser de novo a superstição cristã, ou judeu-cristã, ou muçulmana, que já sabemos que Cristo também foi profeta do Hezbolá. Nos alvores do Século do Cérebro, como canta a propaganda dos seus Ministérios da ciência, resulta que nos lembram agora de uma senhora palestiniana chamada Maria que pariu sem ver varão (seria por partenogénese, como alguns lagartos fémia quando não há machos, que o aprendi em Tecnoticias de la 2), de um filho dela chamado Jesus que em três anos orando no deserto sem beber viu um dia o Diabo (vaia milagre!), e que aos três dias ressuscitou sem vermes (mal negócio para os de C.S.I.) e ascendeu aos céus sem propulsão de energias renováveis. Aí o único normal era o carpinteiro. E vocês querem contar isso nas escolas públicas e depois perseguem as seitas satânicas?
E o Reino aconfessional de España, racional paradigma mundial de matrimónios trissexuais e de Aliança de Civilizações (que vem de "civil", não sei se sabe), vai e nos coloca o seu Chefe de Estado, que ainda acredita nas superstições dos bispos, com esse modelo de família no fundo. Pois apanhados estamos.
Ai ai ai, cumpra-me as constituições, senhor Juan Carlos, que qualquer ano destes o PSOE se enfada com você para ficar bem em Europa e lhe faz a cama no seu próprio parlamento. Mire usté: a sua Constitución diz que no Reino de España o catolicismo tem prioridade de passo (sempre vem pola direita), não monopólio. Para o próximo ano (que será o seu penúltimo como líder de Gran Hermano), digo-lhe: ponha-nos também na tele um candelabro judeu com sete braços, umas surahs corânicas bordadas em ouro do Potosi, um pouco de incenso hindu, uns totens animistas, e, em vez do teleprompter, vaia lendo a sua mensagem revelada numa tábua de ouija. Por tolerância.
Ah, e mude a data do discurso para o 28 de Dezembro.
O seu fiel conselheiro de imagem
Celso Alvarez Cáccamo naceu en Vigo en 1958. É profesor de Lingüística na Universidade da Coruña. Esta é a súa web. »