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"A democracia invadiu o imaginário latino-americano"

Depois de décadas de regime autoritário, os países latino-americanos têm gradualmente retornado à democracia. Porém são herdeiros da ditadura. O cientista político Alain Rouquié, ex-embaixador da França no Brasil, presidente da Casa de América Latina em Paris e autor do livro “Na sombra das ditaduras – As democracias em América Latina”, mostra o paradoxo de nações que têm apostado desde o início na legitimidade da democracia representativa, mantendo a exclusão social e até mesmo a escravidão. Em entrevista ao Opera Mundi, Rouquié afirma que as novas sociedades, mais democráticas, são simbolizadas pela eleição de um ex metalúrgico no Brasil e de um camponês indígena na Bolívia. “A democracia invadiu o imaginário”.

Enviada por Gelo Gelo o 11/07/2010 20:11

Pode se dizer que a independência das repúblicas na América Latina foi idealizada pela elite?
Sim, não foram os colonizados que organizaram as rebeliões para a independência e sim uma elite branca. Em 1810, dos 17 milhões de habitantes da América hispânica, apenas 3,3 milhões eram brancos que proclamaram princípios de igualdade, mas com motivos táticos e interesses próprios. O hino da revolução argentina, por exemplo, exalta a “nobre igualdade” tanto como a “liberdade”’. Mas no final das contas, a minoria branca proclamou igualdade, mas não aceitou nenhuma mudança na sociedade. A única exceção foi o México com revoltas populares rapidamente esmagadas.

O senhor enfatiza em seu livro a necessidade de estabelecer constituições para manter a independência. É um fenômeno específico da América Latina?
As independências hispano-americanas representam uma ruptura da legitimidade de natureza dinástica que havia prevalecido desde a Conquista. Era preciso uma outra fonte de legitimidade. Para as novas repúblicas, devia ser a soberania popular.

Qual a especificidade do Brasil?
O contexto histórico é diferente. A monarquia constitucional dos Bragança assegurou uma independência sem guerra, assim como sessenta anos de “concórdia e paz”. Essa exceção não é apenas uma “democracia coroada”, como dizia o presidente argentino Bartolomé Mitre. O "poder moderador" do Imperador é o eixo central da política e a pedra angular da sociedade. Ele garantiu a unidade e permitiu a manutenção da economia escravista. No Brasil não foi necessário construir uma administração: a portuguesa ficou depois da independência. De certa maneira, o Estado antecedeu a nação.

Foram adotados, nestes países, sistemas eleitorais notoriamente fictícios. Qual a importância destas aparências democráticas?
A soberania popular, que é a única fonte de legitimidade destes regimes políticos, nunca foi discutida e ela se expressa pelo voto. Além disso, a eleição é percebida como a modernidade na política. Os criadores das primeiras constituições queriam se beneficiar da legitimidade do voto popular sem os riscos da igualdade política.
Em conseqüência, estas elites precisaram encontrar formas e meios para excluir o povo “incapaz” de escolha dos governantes.

O senhor diferencia dois tipos de legitimidade, uma dependente de regras constitucionais, e outra, mais elitista. Esta duplicidade ainda existe?
Quando a legitimidade legal coincide com a da elite socioeconômica, o sistema é estável. Mas quando um governo constitucional quer mudar o país através de reformas, e acabar com as relações de dominação entre classes, é percebido como ilegítimo pela elite. Estas minorias agem em nome de uma legitimidade maior, que apela à tradição para justificar a violência. Assim, um golpe de Estado aparece como a única solução para restaurar a chamada “ordem natural”.

Os anos 60 e 70 foram marcados por golpes militares, a democratização, nos 80, tem mantido em alguns países, como Chile, elementos autoritários nas constituições. O senhor acha que estes elementos provocam um mal-estar nas sociedades?
De fato, antes de deixar a presidência, Pinochet impôs uma constituição para uma “democracia protegida”, ou seja, limitada e controlada pelo exército. Somente em 2005 alguns desses "enclaves autoritários" foram removidos. Mas a lei eleitoral, que favorece a direita e afasta as forças políticas contestatórias permanece intocável. No México, a situação é bem diferente, mas também há uma democracia com quadro autoritário. Em 2000, a eleição de Vicente Fox acabou com setenta anos de poder do PRI (Partido revolucionário institucional), mas as instituições ainda são pensadas por um “partido-estado”. No Brasil, as forças armadas ficaram autônomas com a volta da democracia.

Qual é o papel das forças armadas no período pós-ditatorial?
O papel político é pequeno. Com o fim da Guerra Fria, a democracia representativa tornou-se consenso. Além disso, políticas ativas de desmilitarização e a redefinição de sua função em alguns países fizeram com que as forças armadas voltassem para seu papel constitucional em sentido estrito. O problema é que a desmilitarização da segurança pública não foi bem feita. As policias militares têm ainda uma cultura muito militar, na sua “guerra contra a delinquência”, com a idéia de “acabar com o inimigo”. No Brasil, as tropas de elites são consideradas como verdadeiros esquadrões da morte.

O senhor considera que a cultura do medo posta em prática pela ditadura tem despolitizado os cidadãos. É ainda um problema nas democracias latino-americanas?
A cultura do medo acentuou ainda mais a tendência para o individualismo consumista e para a rejeição das solidariedades coletivas nos países onde as ditaduras têm sido mais ferozmente repressivas. A preferência para a esfera privada substitui o compromisso de ontem e as ambições ideológicas. Isso explica em parte a crise que os partidos políticos enfrentam em muitos países. Paralelamente, existem novas mobilizações com um foco mais social do que político. É inegável, no entanto, que essas mobilizações têm impactos políticos importantes. Talvez estejamos assistindo a uma nova forma de fazer política?

O que mudou com a saída dos Estados Unidos, especialmente pós 2005, no "enterro" da Alca?
Acho que a retirada dos Estados Unidos é bem anterior a 2005. Após o 11 de setembro, a América Latina livre de armas nucleares tornou-se uma região pouco interessante para a política externa de Washington, obcecado com o Oriente Médio e Ásia.

O que o senhor acha do trabalho das organizações multilaterais como o FMI e o Banco Mundial, controladas a partir de Washington? É um perigo para a democracia?
Sim e não. Sim porque muitos governos têm sucumbido às políticas de ajuste e os movimentos sociais causados pela aplicação mecânica do chamado “consenso de Washington”. Não, porque a rejeição do modelo ultra-liberal tem contribuído para a expansão da democracia e da "virada à esquerda" do início dos anos 2000.

Na Bolívia, Evo Morales pretende incentivar uma reforma da república, para revolucionar o país sociológico e culturalmente. Qual a sua opinião?
Certamente, a única revolução na América Latina é lá. A integração dos setores sociais historicamente marginalizados, a renovação da classe dirigente e a preocupação pela diversidade cultural representam uma verdadeira transformação nacional. O problema é que a Bolívia é heterogênea. A “reparação” não deve transformar-se em vingança étnica. O governo precisa compatibilizar os progressos da “descolonização com o estado de direito e a estabilidade econômica.

Como o senhor compara os “populistas” Perón, Vargas, Velasco Ibarra aos novos políticos anti-sistema que surgiram no final do século XX?
Os regimes que reivindicam hoje a “reparação” e a “refundição” são muito diversos, como foram também os governos de Perón, Vargas, Velasco Ibarra no século XX. A principal diferença entre aquela época e a nossa, é que a base deles foi a classe trabalhadora urbana. Os regimes atuais mobilizam os camponeses e o setor informal, mas não tem muito apoio dos sindicatos e operários formais. Longe de buscar o consenso e o diálogo são altamente conflituosos.


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