Era meio-dia e chegadas de Compostela duas mulheres arrastavam pelas viguesas ruas uma pesada caixa cheia de livros. As malas que também levavam incomodavam um pouco ao subir e descer dos meios de transporte. Mas eram duas e estavam decididas. Como todo o mundo sabe, duas mulheres decididas podem conseguir qualquer cousa, ainda que o seu propósito naquele momento era tão só chegar ao Sá Carneiro do Porto para apanhar um voo a Lisboa.
No aeroporto juntava-se uma parte da comitiva que voava para a capital portuguesa a se reunir com os outros acompanhantes, os quais, provenientes de diversos lugares do mapa oficial português, completariam o grupo e juntos embarcariam no aéreo que os transportaria, atravessando quase dez atlânticas horas de oceano, até Brasília, capital da República Federativa do Brasil.
As galegas Concha e Isabel pisavam terra brasileira de manhã, muito cedo, no aeroporto de Guarulhos junto dos açorianos e os outros galegos do Sul que conformavam a Comitiva Oficial dos Colóquios da Lusofonia (1). Convidadas pelo governo brasileiro preparavam-se para participar na Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial (2), organizada pela Comunidade de Países de Língua Portuguesa (3), a se celebrar no palácio Itamaraty entre o 25 e o 27 de março.
Nada mais chegar ao hotel a sequência foi tomar banho, vestir-se e sair correndo para o Itamaraty, onde essa mesma manhã teria lugar a Recepção Oficial e a sessão inaugural do evento com a participação dos elementos diplomáticos de vários países lusófonos.
Depois do almoço iniciaram-se as palestras. E foi durante o espaço destinado às perguntas que começou o movimento das galegas: Distribuídas segundo a disposição do programa, o qual indicava duas salas de conferências simultâneas, intervieram em seis ocasiões, apresentando a Academia Galega da Língua Portuguesa (4) e denunciando a situação linguística da Galiza.
A recepção das suas intervenções foi excelente, tornou-se comum a todas elas uma forte salva de palmas no fim da alocução e, a seguir, conversa e troca de contatos com as pessoas, numerosas, que ficavam interessadas.
A atividade despregada deu assim produtos extraordinários, sobretudo se temos em conta que o trabalho era feito desde a total falta de apoio governamental galego ou espanhol, de maneira voluntária e sem mais recompensa que a da presença galega nesses foros onde se debateu, ao mais alto nível, o futuro mundial da Língua Portuguesa. Essa presença significou a continuação da mantida no passado em duas ocasiões (Rio de Janeiro, 1986 e Lisboa, 1990) pela Delegação de Observadores da Galiza (5), reiteradamente ignorada, desprezada e silenciada na nossa terra, mas da que tinham conhecimento e lembrança os diplomatas lusófonos.
As idas e vindas do hotel ao Itamaraty davam para tirar alguma foto e repor forças no shopping ao lado. Brasília é uma capital jovem que cumpre cinquenta anos em abril de 2010 e foi construída organizadamente: os residenciais numa zona, os edifícios administrativos noutra, os hotéis noutra diferente. As diferentes zonas estão comunicadas por o que para os galegos seriam grandes autoestradas de várias faixas de circulação e para os brasileiros são estradas normais, necessárias para sustentar o volume de viaturas que diariamente cruzam a cidade. A aparência dos arranha-céus ao longe tocados de brancas nuvens demorando-se maininho no céu brilhante tem a ver com o grande espaço que a cidade contém, as ruas amplas, a atividade nos centros comerciais e a vida ultramoderna que, em geral, vivem os seus habitantes.
Depois da adrenalina empregada nos dous dias de congresso, e felizes com os resultados, lá foram as galegas e toda a Comitiva dos Colóquios para Guarulhos novamente, pegar um voo a São Paulo de manhã e assim poder cumprir com a visita guiada ao Museu da Língua Portuguesa (6).
No trajeto do aeroporto paulistano ao Museu, sito na céntrica Estação da Luz, tiveram a sorte de ser conduzidas por um espectacular taxista nordestino que explicou extenso e irónico as vicissitudes da política brasileira, entanto eram acompanhadas pelo longo rio Tietê que junto delas ouvia o relato sem desviar-se do percurso, diz que em direção contrária ao mar...
O formoso Museu da nossa língua ocupava uma parte do antigo edifício da estação de trem e oferecia projeções de vídeo, painéis explicativos da história das línguas, jogos interativos, exposição de erros comuns entre os falantes de língua portuguesa, e havia muita música e poesia. Uma projeção audiovisual mostrava um planetário em que os poemas apareciam e se entrelaçavam em cúmulos, nebulosas e constelações de palavras. O Museu mostrava o universo da língua a se abrir aos presentes, onde ainda chegava a luz da remota Martim Codax, gigante vermelha dos céus da arte antiga, molhando o coração brasileiro com as águas do mar de Vigo.
Mas fora isso, observaram as galegas pouca Galiza. Não lhes chegou a que havia. O Museu tinha Galiza medieval, mas não havia nada de como os galegos foram submetendo a sua cultura aos ditados alheios, nem havia notícias do hoje, dia em que a Galiza observa altos cargos e professores universitários a debaterem se o Galego deve morrer cozido ou assado.
Pois, entanto cozidos ou assados, duas mulheres puseram os pés em Brasília, capital do Brasil, potência emergente, titã da poderosa língua dos galegos, cheia de variados acentos e sotaques, o netinho galego mais querido. Lá falaram as galegas com bom senso e correção idiomática, e foram ouvidas por embaixadores, ministros e outros diplomatas. Partilharam almoços e conversas com todo tipo de pessoas que as abraçaram e trataram como iguais por fazer o que é natural nos galegos: cultivar e defender a nossa língua que ali chamam, sem nenhum preconceito, de língua portuguesa ainda que o número de cidadãos portugueses seja ridículo em comparação com o total de falantes da língua, que vai dos descendentes de todos os cantos da Europa até aos índios guaranis passando pela população de ascendência africana. Todos falando galego, com acento, isso sim.
O mundo está mudando para os galegos a velocidade vertiginosa. Talvez no Museu da Língua Portuguesa admitiriam alguma colaboração para completar as suas informações sobre a Galiza. Se for esse o caso: Que Galiza deverão mostrar os galegos em São Paulo? Aquela tolheita e isolada pela sinistra Espanha antigalega, aquela que não aprende língua portuguesa e por isso não pode dialogar fluentemente com o Brasil? Ou aquela Galiza desperta, desinibida, segura de si, que usa a via da comunicação sem interferências nem complexos, que pega o caminho da modernidade pela autoestrada da Língua Comum?
Publicado em: Portal Galego da Língua
(1) Colóquios da Lusofonia
(2) Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial
(3) Comunidade de Países de Língua Portuguesa
(4) Academia Galega da Língua Portuguesa
(5) Delegação de Observadores da Galiza
(6) Museu da Língua Portuguesa
Isabel Rei Sanmartim (1973) é estradense e música. Depois de titular-se em Guitarra no conservatório superior da Crunha continuou a sua formação musical no estrangeiro com professores como David Russell e Thomas Müller-Pering. Participa em festivais de guitarra na Itália e na Galiza com atuações em Portugal e no Brasil. A sua atividade musical inclui o acompanhamento de recitais poéticos e de contacontos, sendo o mais frequente a atuação em recitais de guitarra como solista. »